O
corpo, de acordo com Roy Porter, sempre foi dotado de significados, e “Desde os
tempos mais remotos, todas as sociedades tiveram algum conhecimento tangível das
vísceras, até em função das práticas de abate e sacrifícios de animais.”
(PORTER, 2004: 73). A partir desta afirmação, essa medicina “popular” acabou
não sendo tão explorada, cabendo ao historiador o papel de investigação, Revel
e Peter nos diz que essa medicina: “Ela é, aliás, múltipla: prática tradicional
dos cirurgiões, dos barbeiros, medicina branca das “senhoras idosas”, aquela
mais sombria dos algebristas e dos feiticeiros.” (REVEL, PETER, 1972: 149).
Analisaremos especificamente aqui o caso indígena.
Para analisar os processos da cura oriundos
dos conhecimentos indígenas, devemos primeiramente nos ater ao contexto
histórico da época pois,
“Torna-se clara a impossibilidade
de estudar as doenças e a medicina de uma comunidade, sem conhecer seus hábitos,
cultura e tradições. E mais: este estudo torna-se totalmente equivocado quando
fora de seu contexto histórico temporal.” (GURGEL, 2009:19)
Outro ponto importante é que as
populações indígenas brasileiras não detinham escrita, desta maneira suas tradições
eram passadas oralmente o que dificulta muito estudar as suas práticas e
costumes, “(…) para tentar desvendar o mistério das
moléstias que afligiam estes povos, foi necessário apelar, além de testemunhos
europeus pioneiros, para a arqueologia e ciências correlatas.” (GURGEL,
2009:47)
De acordo com, Eliane Cristina
Deckmann Fleck (2005), para os indígenas, a enfermidade era algo sobrenatural,
seriam forças superiores aos homens que acabavam por possuir o corpo do
indivíduo, sendo este levado a recorrer à ajuda da magia, religião e ervas
medicinais como uma possível solução para sua enfermidade. E a doença para
estes era uma forma de punição de erros cometidos pelo indivíduo. “ (...) a
perturbação da ordem natural – por intervenções sobrenaturais – decorria de
transgressão moral ou religiosa.” (FLECK, 2005:78)
A documentação que analisamos contém
grande foco no trabalho dos jesuítas como mediadores dessa cura na colônia, de
acordo com Daniela Buono Calainho (2005) além de trabalharem incansavelmente na
difusão da fé cristã, “(…) os jesuítas também foram uma grande âncora da saúde
na colônia, atestada pela vastíssima documentação das correspondências que
mantiveram com seus irmãos em Portugal.” (CALAINHO, 2005:4)
Como
podemos perceber, a falta de pessoas formadas na área médica deixava uma brecha
muito extensa para o desenvolvimento das práticas dos curandeiros indígenas,
como dos demais práticos.
“Alguns
deles vinham de Portugal já formados nas artes médicas, mas a maioria acabou
por atuar informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões, aprendendo
na prática, o ofício na colônia, como José de Anchieta.”(CALAINHO, 2005:4)
Devemos
lembrar que essas práticas eram repreendidas pelos jesuítas que tinham como um
de seus objetivos a reordenação moral da população e viam nas práticas
indígenas resquícios de um paganismo que deveria ser combatido.
Os
conhecimentos dos indígenas em relação à fauna e flora da nova região era muito
utilizado pelos jesuítas, que além de tudo eram exímios observadores das ervas
medicinais. Um dos motivos da grande utilização das ervas curativas pode ser demonstrado
na dificuldade do transporte de medicamentos, como Daniela Buono Calainho
(2005) nos demonstra:
“Os
medicamentos que supriam suas boticas vinham do Reino, mas a pouca frequência
de chegada dos navios, as eventuais perdas por deterioração nas embarcações e
nos portos e os altos preços obrigaram-nos, ao longo tempo, a se voltarem para
os recursos naturais oferecidos pela nova terra, ajudados pelos conhecimentos
indígenas na decifração desta natureza estranha.” (CALAINHO, 2005:6)
Não
podemos deixar de observar que a circulação de medicamentos dentro da colônia
deveria ter um alto grau de dificuldade, tanto no seu transporte de Portugal
até a colônia como dentro do seu território, sem contar que esse grau de
dificuldade encarecia ainda mais os medicamentos, dificultando o acesso da
população mais pobre.
Tais
características evidenciam as necessidades que possuíam os jesuítas de terem
acesso à esse saber que os índios detinham, já que o acesso da população
colonial aos medicamentos era escasso e limitado.
“(...) os
registros feitos pelos padres jesuítas, ao longo do século XVII, revelam uma
absorção cada vez maior da farmacopéia (ervas, resinas e folhas), bem como da
terapêutica empregada pelos indígenas, com algumas adaptações, como nos casos
dos ferimentos expostos (...)”. (FLECK, 2005:85)
Um
fato que não podemos deixar de observar é que para os jesuítas o Novo Mundo era
completamente diferente do que estavam acostumados no Reino. Os costumes
indígenas eram vistos como anormais e muitas vezes não conseguiam ser
assimilados pelos missionários, que ficavam assombrados com costumes como o
canibalismo, o incesto e a poligamia. Nessa categoria podemos incluir os
rituais de cura indígenas e aqueles que os praticavam, como também os que
buscavam pelas suas curas.
Tanto
os indígenas como seus costumes e práticas eram vistos pelos missionários como
manifestações ruins e assim,
“(…) a empreitada hercúlea da catequese esbarrou ainda na
ação nefasta do xamanismo tupi, destacando-se, no conjunto destes ritos, variados
procedimentos curativos, vistos pelos inacianos como ilegítimos e demonizados.”
(CALAINHO, 2005:12)
Os
pajés como detentores dos saberes curativos se tornaram o alvo principal da
cristianização, era necessário desmistificá-los, demonstrar a falsidade do seu
poder de cura e assim, demonizá-los perante a população, delegando a Deus o
poder da cura.
Daniela
Buono Calainho conclui seu artigo da seguinte maneira:
Para além do que
vinha da farmacopéia européia e oriental, a natureza brutalizada e violenta do
mundo colonial ofereceu aos inacianos ervas, raízes, enfim, os remédios para as
curas, auxiliados pelos conhecimentos dos nativos, graças a quem os jesuítas
adensaram suas fórmulas e práticas curativas. No entanto, foram estas mesmas
práticas que serviram de apoio ao projeto catequético inaciano, projeto
aculturador, que, em nome da fé cristã, marcou presença decisiva no mundo
colonial (CALAINHO, 2005:15).
Podemos
assimilar que as práticas indígenas e seus conhecimentos mesmo demonizados
pelos jesuítas foram muito utilizados, tanto pela escassez de medicamentos como
pelo seu baixo custo e facilidade de acesso, tornando assim a relação
índio-missionário em um trato de amor e ódio, desmoralização e necessidade,
desmistificação e posse.
A
importância da aliança entre saberes tradicionais indígenas e as pesquisas
científicas feitas no século XVIII é demonstrada com as permanências culturais
de ritos, mitos e ervas medicinais com as novas práticas dos profissionais da
cura. Nesse sentido, essas práticas medicinais merecem ser mais bens estudadas
nesse projeto de pesquisa que apresentamos.
Autores do Texto:
Jakline Estevão Costa e Karoline Conceição da Silva Cardoso
Referência Bibliográfica:
CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial.
Tempo, Rio de Janeiro, nº 19, pp. 61-75.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify: 2002.
GURGEL,
Cristina Brandt Friedrich Martin. Índios,
Jesuítas e Bandeirantes. Medicinas e Doenças no Brasil dos séculos XVI e
XVII. Campinas, SP, 2009.
LE GOFF, Jacques. História: Novos Objetos.In: REVEL,
Jacques, PETER, Jean-Pierre. O Corpo O homem doente e sua história. Rio de
Janeiro, 1976.
PORTER, Roy. RIBEIRO, Veras. Das tripas coração. In: O corpo. Rio de
Janeiro: Record, 2004.
TAUSSIG, Michael T. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra: 1993