Os Karajá: A etnia de Aruanã


  Os Karajá ou Iny, como se auto denominam, vivem na região do rio Araguaia nos estados do TO, MT e GO. Hoje contam com cerca de quatro mil indivíduos que apesar de toda a socialização com os não-índios ainda mantêm firme sua cultura, tradições, língua e ensinamentos.  A denominação Karajá é datada do ano de 1908, quando foi consagrada após sofrer diversas modificações, mas a auto denominação original dessa etnia sempre foi Iny, que na língua deles significa “Nós”. Em relação a língua original da etnia, classificamos ela como pertencente ao tronco Macro-Jê que engloba também o Javaé e o Xambioá, que apesar de algumas diferenças na pronuncia são facilmente entendidos entre si. Hoje em dia grande parte das tribos Karajá já tiveram contato com o português e o utilizam no seu cotidiano, como forma de facilitar o contato com os não-índios.
  De acordo com estudos históricos, desde muito remotamente os Karajá travavam disputas com outras etnias para proteger o seu território, como os Kayapó, os Tapiparé, os Avá-Canoeiro, os Xavate e os Xerente. Foram dessas disputas que eles englobaram alguns aspectos de outras culturas. Em relação ao contato com a nossa sociedade, os estudos dizem que houveram duas grandes frentes, a primeira foi uma missão Jesuíta comandada pelo Padre Tomé Ribeiro datada de 1658, já o segundo contato está relacionado com as bandeiras do Centro-Oeste, um exemplo que podemos dar foi a expedição comandada por Antônio Pires de Campos datada entre os anos de 1718 a 1746. O que vale ressaltar é que essas duas expedições foram apenas a porta de entrada para diversas outras que assim viriam, obrigando essa etnia a ter um contato constante com a nossa cultura, independente da vontade ou não vontade deles.
  As aldeias Karajá sofreram diversos abusos por serem pontos de fácil acesso, aqui podemos citar a entrada de diversos estudiosos atrás de objetos culturais valiosos, a construção de um hotel de luxo no território indígena, a busca incessante das bonecas de barro artesanais típicas dessa etnia, as visitas frequentes de diversos políticos e outras frentes com diversos tipos de interesses. O resultado dessas investidas não poderia ser mais desastroso, os homens brancos levaram para os índios a tuberculose, o alcoolismo, a subnutrição e o pior de todos: o preconceito. A população local por falta de conhecimento dos males que causaram aos Karajá os descriminam, sem saber que foram eles os causadores dos maiores sofrimentos a essa e a outras etnias. É aqui que vemos a grande força de vontade e resistência dos Karajá, pois mesmo com todas as adversidades eles ainda mantem firme sua cultura, seus valores e sua organização social.
  Falando um pouco da organização social dessa etnia, devemos começar citando o ciclo de vida deles, que é caracterizado por fases marcantes e diferenciadas em relação ao sexo do indivíduo. O nascimento de uma criança muda de várias formas a vida dos pais, algo bem interessante para ser citado é que passam a ser conhecidos como pai e mãe de ego (aquele que nasceu) e não mais pelos seus nomes próprios.  Assim que o bebê nasce, existe uma tradição muito bacana que é a lavagem em água morna e a primeira pintura com urucum. Como em outras etnias que já estudamos aqui existe uma separação bem definida por gênero. Durante a infância até aproximadamente cinco anos, tanto os meninos quanto as meninas tem o mesmo tipo de tratamento, são criados com as mães e avós. A diferenciação de gênero começa quando aos sete anos o menino tem seu lábio inferior perfurado com osso de guariba e por volta dos seus dez anos passa pela festa de iniciação denominada Hetohoky (Casa Grande). As meninas são consideradas mulheres a partir da sua primeira menstruação, quando ficam reclusas e aparecem apenas na comemoração de Aruanãs e é nesse momento que já estão aptas para o casamento que sempre é arranjado pelas avós dos pretendentes. Após o casamento eles vão morar na casa da mãe da esposa até que a família se torne grande demais e precisem construir uma casa anexa a casa principal. De certo modo é muito semelhante ao Xavante, talvez uma herança cultural adquirida nos confrontos que comentamos acima. 

Perfuração com o osso de guariba

Ritual de iniciação masculino
  Como podemos reparar, desde o nascimento é bem definida a importância da diferenciação de gêneros, algo que está dentro dos mitos e padrões dessa etnia. O homem aqui sempre vai ser responsável pela defesa do território e da família, de proporcionar a alimentação por meio de caçadas, colheitas, pescas e do preparo das roças para o cultivo, de toda a política interna e externa da tribo, da fabricação e manutenção das casas como de toda a parte xamânica. As mulheres por sua vez são responsáveis pela educação dos filhos, dos meninos até o ritual de iniciação e das meninas por toda a vida, pelos afazeres domésticos, pelos artesanatos, pelo preparo do alimento e por rituais que demonstrem o lado afetivo da aldeia, um exemplo é quando alguém está doente ou morre, o ritual realizado é de responsabilidade feminina, talvez por utilizar muito o lado emocional. Uma característica muito bacana dos Karajá é que eles preferem a monogamia, se a traição do marido for de conhecimento público os homens da família da esposa traída podem se vingar pelo ocorrido na frente de todo o restante da aldeia. Outro fato muito bacana é que a família é tida como um ponto referencial cultural muito importante para eles.
  Dentro da aldeia, que é a unidade básica da organização social Karajá, são tomadas todas as decisões políticas internas e externas. O local escolhido para os debates é a casa de Aruanã, é nela que elegem o “Capitão”, pessoa responsável por todo contato com as organizações externas como: FUNAI, ONGs, universidades, governos estaduais e quem mais tenha algum tipo de interesse na aldeia. Um fato muito intrigante é um tipo de chefia existente, que parece ter duas funções: ritual e social. Essa chefia normalmente é escolhida por um então chefe e é feita de uma maneira simples: uma criança do sexo feminino ou masculino, que tenha ligação paterna com o chefe atual é escolhida e treinada para ser o sucessor(a) no comando. O chefe e a criança são conhecidos como Ióló e Deridu respectivamente.
  A arte é muito importante para essa etnia, aqui podemos incluir diversos aspectos. Vou começar falando um pouco da pintura corporal, que faz parte dos rituais de puberdade tanto feminino quanto masculino. Antigamente, antes do contato com o não-índio, os jovens se submetiam a pintura do omarura, que consistia em dois círculos tatuados na face com a mistura de jenipapo e fuligem de carvão aplicada sobre a pele já sangrada pelo peixe dente-cachorra. Após o contato e o preconceito estabelecido pelos ribeirinhos o ritual foi modificado, hoje em dia os jovens apenas fazem os círculos na face, sem mais a sangria do peixe. Na pintura feminina é utilizado o urucum e os padrões normalmente estão ligados a natureza. Um dos grandes atrativos para os turistas são as cerâmicas produzidas pelas mulheres, aqui podemos e devemos citar a boneca Karajá, que tem um grande valor cultural, social e econômico, pois é muito procurada pelos turistas que vão até a região.  Esse ofício é tão importante para toda a nossa cultura que após a realização de um projeto foi considerado Patrimônio Cultural do Brasil. A arte plumária também é muito importante para os Karajá, mas com a dificuldade cada vez maior de encontrar araras os enfeites tem se reduzido drasticamente em sua produção.

Pintura Corporal Karajá

Pintura Karajá
 
Bonecas Karajá
 
Bonecas Karajá
 
  Uma parte que muito me atraí no estudo dos Karajá é a cosmologia. O mito de criação deles diz o seguinte:

Ritual de Aruanã
 
“Aruanã era um peixe que vivia nas profundezas do rio Araguaia. De vez em quando subia às margens do grande rio, e contemplava a vida humana. Seu ser aquático enchia-se de tristeza, pois pensava que a verdadeira felicidade estava no cheiro do ar, na beleza da terra. Sentia-se perdido e infeliz em viver nas águas e ser um peixe. Sonhava um dia tornar-se homem e correr pela terra seca.
Na festa do Boto, o senhor das águas, realizada nas profundezas do Araguaia, todos os seres aquáticos participavam felizes. Lá estavam a bela Iara e a sua irmã Jururá-Açú, deusa das chuvas, e todos os peixes e habitantes do grande rio, numa alegria radiante. Só Aruanã mostrava-se infeliz, a sentir-se estranho àquele mundo, a lamentar ter nascido no rio e jamais poder respirar o ar.
Ao sair da festa do Boto, Aruanã nadou, nadou, subindo sempre na direção da superfície das águas. Num ímpeto de coragem e determinação em sentir o aquecimento esplêndido da força do Sol sobre a Terra, ele pôs a cabeça de fora das águas. Quase a sufocar com o ar, falou com todas as suas forças de peixe sonhador em busca da felicidade:
-Grande Tupã, senhor da vida e da natureza, na água nasci, mas nela não quero morrer. Se peixe é o meu corpo, meu coração é humano. Tira-me das águas que me faz infeliz e sem sentido, dá-me o ar como forma de pulsar e a condição de homem como realizador da vida.
As palavras de Aruanã saíram tão veementes, que Tupã percebeu o verdadeiro destino do valente peixe e a essência da sua alma. Compadecido, o senhor das matas desceu às profundezas do rio Araguaia, arrebatando de lá o infeliz peixe. Voou com Aruanã, que não podendo respirar, debatia-se no ar. Por fim, Tupã deixou-o no campo, sob os raios intensos do Sol e das brisas suaves dos ventos.
Aruanã debatia-se sobre a relva, pensando que iria sufocar. Não amaldiçoou Tupã, pelo contrário, mesmo sem conseguir respirar o ar da Terra, agradeceu por aquele momento final, iria morrer longe das águas, como sempre sonhara. Fez um louvor ao deus e cerrou os olhos, à espera da morte e da felicidade alcançada.
Comovido, Tupã iniciou a metamorfose do peixe. Em vez da morte, Aruanã viu as escamas transformadas em pele, revestida de pelos suaves que a brisa contornava em desenhos; braços e pernas musculosas davam-lhe o aspecto viril. O ar finalmente chegou-lhe aos pulmões. Sentiu o cheiro da Terra. Olhou emocionado para o seu corpo e sorriu feliz, já não era um peixe, e sim um homem, forte e belo.
-Provaste que tens um coração grandioso e valente. – Disse-lhe Tupã. – Serás um grande guerreiro entre os homens; pai da mais sábia das tribos. Aruanã peixe foste, Aruanãs hás de te chamar como homem. Vá, cumpra o teu destino de homem guerreiro!
Para saldar o belo e jovem Aruanãs, as Parajás, entidades da justiça das matas, vieram e prestaram honras ao guerreiro. Deram a ele uma tribo e as mais belas mulheres. Unindo-se às mulheres, o jovem guerreiro gerou filhos e filhas, dando origem aos valentes Carajás, que formaram uma tribo de índios valentes a viver às margens do rio Araguaia. Todos os anos, por ocasião da Lua cheia, os Carajás realizam o Ritual do Aruanã, prestando, através da dança e do canto, a homenagem justa ao pai da nação Karajá.”

Ritual de Aruanã

  Esse mito de criação é uma das versões, se vocês procurarem na internet encontraram diversas outras versões, o que importa ressaltar é que está intimamente ligado com todo o sistema ritual e até mesmo social dessa etnia, pois tudo que fazem é regido pelos mitos, seja o local onde a aldeia vai estar localizada, o local onde construíram as casas ou pescam. Tudo está intimamente ligado com os rituais e a sabedoria ancestral de seu povo. 


 Confira alguns vídeos:


9 comentários:

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  2. Boa tarde,sou acadêmica de Letras-Literatura,através da disciplina identidade nacional,que fala do amor do guerreiro Ubirajara, com Araci,filha do chefe dos Tocantins.Tivemos que ler o romance Ubirajara do Alencar,obra lindíssima que narra as guerras das tribos Araguaias com os Tocantis.Parabéns pelo blog,muito interessante a origem dos índios que hoje são os Karajás

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado do blog, ainda não li esse romance mas vou procurar por ele :)

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  3. Bom dia, sou filha de indio da aldeia hoje extinta parecis.. estou grávida e entrando no 8 mês, já tenho um filho de nome Kauê e agora gostaria de sugestões quanto ao nome da menina que vem, quero continuar minha homenagem ao meu povo, se tiverem poderiam me enviar? Obrigada.

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    1. olá,eu não sei se estou enganado ou se é a mesma etnia, mas eu conheço o povo dos parentes parecis ou mas conhecidos como Paresi Haliti, eles não estão extintos continuam firmes e fortes, mantem toda a sua cultura e língua tradicional, eles são do Mato grosso, se for da mesma etnia de seu pai, você poderá aprender da sua origem e cultura lá na aldeia dos parecis.

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  4. Tenho 60 anos, sou estudante, e achei show tudo que vi aqui.

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    1. Sério Marcos? Fico muito feliz que gostou. Logo terá mais conteúdo no blog, espero que goste.

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  5. Sou compositor e tudo que li neste blog,me deu uma grande inspiração, vou fazer um samba de enredo para uma escola de samba. Agradeço as pesquisas e os carinhos com as palavras. Fiquem com Tupã. Rs

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    1. Fico muito feliz com comentários assim ♥ Me motivam a retornar para o blog.

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