Suia: O que você faria se fosse a última de sua tribo?

  Hoje apresento para vocês um conto que fiz, a minha inspiração foi das pesquisas que faço pra esse blog, mais precisamente sobre os Avá-Canoeiro. Caso vocês tenham qualquer material com a temática basta enviar que irei publicar no blog. Espero que gostem.



Suia



“Minha casa era aqui, grande.
Moravam muitas pessoas,
Uma família grande.
Aqui as redes...muitas.
Os índios tocaram muito maracá de noite.
Plantaram mandioca.
Precisa tocar pra nascer planta nova.
Depois que parou a música dos maracás...
Já era quase de manhã.
Então chegaram muitos homens
Atiraram muito
Muito chumbo no meu povo
Acertava na cabeça e o coração parava
E índio caia.
Eu chorei muito
Índio homem, mulher, menino bonito, morreu tudo
Acabou.”

Relato de uma das sobreviventes do massacre contra
Os Avá-Canoeiro feito em 1970 por fazendeiros e
Moradores dos povoados ao redor da tribo.

 

Prólogo

 Vazio. A floresta está toda vazia. Vejo mato, terra, céu, ainda teimo olhar pro chão, ainda teimo olhar pro topo das árvores. Estamos sozinhos. Perdidos na natureza. Essa terra foi nossa, muito tempo atrás, antes de mim, antes da minha mãe, antes de tudo. Antes dos brancos, antes das armas, antes do fogo. Antes de todas as mortes. Mas não quero falar antes o que só posso explicar depois. A vida é assim, o rumo das palavras não é como o destino, inexorável. Preciso de um rumo, de um porto seguro, preciso contar a minha história, que não é só minha, é de todos nós. Essa história começou séculos atrás. Passado de mãe pra filha, de geração em geração. Comigo não seria diferente, minha mãe me contou. Mas sinto necessidade de escrever, nosso destino está se apagando e quando o último da minha tribo morrer, ninguém vai saber o que aconteceu. Não vai ter mãe para filha, nem filha para mãe. No final o que resta é o vazio. Esse mesmo vazio de uma noite escura na floresta. Tenho medo que eles me encontrem. Medo de não conseguir terminar o meu relato, mas se esse for o meu destino, aceito e sorrio. A vida é igual ao nosso destino, ela sim é inexorável.
  Não tenho filha pra seguir nossa tradição, somos tão poucos, aqui não passamos de cinco, mas minha mãe diz que já fomos muitos, milhares! E essa terra era toda povoada, tinham crianças correndo, todos tínhamos pais e mães. O homem branco estava longe, não tinha chegado até nós. Isso foi a muitas e muitas gerações atrás, eu era uma semente no meio da semente de outra semente, meu povo era feliz e sorria, hoje chora, ou não chora mais, não temos tempo nem segurança suficiente para chorar. Mas não quero me perder nas palavras, as vezes passado e presente se misturam, mas nunca o futuro, esse é certo e triste demais pra ser declarado.
  Vivíamos nessa terra, hoje conhecida como Goiás e alguns dos nossos viviam em Tocantins, mas não a chamávamos assim, tínhamos um nome diferente e antigo, não que isso faça diferença, o importante é o lugar em si. Nossas histórias dizem que era um lugar tranquilo, tínhamos que nos preocupar apenas com a caça, os homens cuidavam disso, cuidavam de nos alimentar. Eles também eram responsáveis por nossa segurança, não que precisássemos. A floresta era a nossa mãe e nos acolhia, nas noites de chuva as árvores nos protegiam, nos dias de calor a brisa nos refrescava e quando estava muito frio tínhamos uns aos outros para aquecer. Não faltava comida, muito menos a tranquilidade para caçar. Usávamos nossa língua e não tínhamos com o que nos envergonhar, erámos muitos, cada tribo com o seu dialeto, mas nos entendíamos. Todos nós nos entendíamos.
  Sou muito nova para me lembrar de algo, não lembro das fugas, nem das cavernas frias e escuras que nos acolhiam, elas nos protegiam dos homens estranhos, com armas vindas de longe para nos matar. Nessas ocasiões minha mãe me contava suas histórias, com muito pesar. Fechava os olhos e encostava na pedra, sentia sua dor. A dor de quem perdeu seu maior bem para o homem branco. A dor de quem foge na sua própria casa, foge pela vida, pela chance de poder passar adiante a história e é assim que começo essa narrativa, juntando os cacos do passado com o presente e tentando, quem sabe conseguindo, passar o real significado das minhas palavras, das palavras do meu povo.
  Tudo dói, a noite avança e com esse cenário tudo tem seu início...




Tudo tem seu início


- Corre Suia, corre! Vem logo! Atravessa o rio!
  Iangá já estava impaciente, não aguentava mais esperar pela irmã à beira do rio. A outra garota corria e pulava na água, molhando todos que estavam ao redor. Suia sempre teve esse espírito brincalhão e revolto, como os mares em dias de fúria. A garotinha mais bonita da tribo, filha do Cacique e de uma boa índia guerreira, não igual as Icamiabas, mas sim como uma boa mãe que cumpria suas obrigações e acima de tudo as fazia com amor e dedicação.
  - Suia! Não vou te esperar mais. Nosso pai não gosta de atrasos e você sabe disso.
  Então Suia já toda suja do barro nas margens do rio e mais molhada que em dia de chuva resolve que está na hora de ir embora com sua irmã mais velha, nada até a outra margem do rio e joga água na cara da irmã num tom jocoso e irresponsável que só uma garotinha com seus sete anos pode ter.
  - Eu te pego Suia, você me molhou inteira! – grita Iangá enquanto tenta limpar seu rosto
  - Só se você conseguir me pegar
  Dizendo isso sai correndo na frente da irmã, seus cabelos grudados nas costas com alguns fios revoltos voando ao redor. Iangá sem querer ser deixada para trás sai correndo atrás de sua irmã mais nova, rindo e ameaçando a pequena criatura esguia que estava na sua frente. Corriam e sorriam como se o mundo não tivesse fim e aquele fosse o melhor dia de suas vidas. Talvez o sol brilhando ao redor desse essa leve impressão de irresponsabilidade no ar. E as duas correram como se não tivessem nada mais para fazer, sentindo o prazer da terra nos pés descalços e da brisa suave que envolvia o corpo a cada passo.
  - Sabia que você não conseguiria me pegar Iangá, você nunca consegue, é velha demais para isso!
  - Pois se prepare, no dia que eu consegui te encho de cascudos criança
  - Não sou criança, tenho poucos anos a menos que você – Suia sempre ficava irritada com essas provocações que sua irmã mais velha fazia, não se achava criança em seus plenos sete anos, nunca se achou criança para dizer a verdade, sentia grande responsabilidade por ser filha de Upé, o Cacique mais temido de toda região.
  - Quando você tiver mais que dez anos paro de te chamar de criança, antes disso aceite sua condição – Dizia Iangá sorrindo para a irmã, pois sabia que isso seria o fim do mundo para a pequena impaciente, se 3 dias eram o infinito, 3 anos eram o equivalente a viver, morrer e nascer novamente.
  - As duas vão ficar ai discutindo quem é mais criança ou vão entrar e ajudar a mãe?
  As duas garotas correram para dentro da oca de encontro a mãe, a habilidosa Angá, com suas cerâmicas que luziam a luz do sol e davam um brilho bonito para a habitação. Sabiam que a mãe não queria a ajuda delas, só gostava de ter alguém pra contar suas histórias, que de uns tempos pra cá foram obrigadas a ouvir com mais concentração e repetir algumas vezes, a mãe andava preocupada, Acy e Upé saiam da tribo com uma frequência maior nesses dias, levavam alguns dos homens também. Seu marido de tantas datas pedia para não se preocupar, estavam apenas caçando, mas a caça as vezes não vinha.
  - Vocês duas sabem como é importante a história do nosso povo, uma história que não é só minha ou só sua, uma história que é toda nossa e que devemos preservar. Hoje somos muitos mas quando formos poucos deveremos saber o que nos aconteceu.
  As garotas sentavam na frente de mãe e a viam trabalhando a argila naquelas pequenas mãos, que nem por isso eram frágeis, viam a argila ser moldada enquanto ouviam as histórias e cânticos de seu povo. Achavam engraçada a preocupação repentina da mãe com os homens, não entendiam o significado de perigo, nunca passaram por algo que as pudesse machucar.
  - Mãe, conta de novo a história da nossa criação? – Suia tinha adoração por essa história e quase todos os dias pedia para a mãe contar novamente.
  - Muitos e muitos e muitos e muitos séculos atrás – Começou Angá – O sol, grande coração do nosso criador sofria enclausurado na sua prisão, até que um de seus antepassados lhe soprou uma fumaça, vinda de seu cachimbo mágico, herança também de um antepassado, assim nasceu nossa grande mãe, a nossa terra, e foi a partir dela que o primeiro índio nasceu e foi a partir desse índio que toda a terra foi povoada, todos os índios vem do nosso grande antepassado, todos nós somos filhos do mesmo pai.
  Angá continuou contando sua história, Suia se deliciava a cada novo detalhe que a mãe falava na hora, mas Iangá não prestava mais atenção, seu pai tinha chegado da caçada, todos traziam flores para as mulheres, mas o que chamou atenção de Iangá foi seu irmão. Acy estava machucado, parecia muito abatido, como se um grande pesar passasse por sua cabeça. Upé não estava diferente, seu corpo estava intacto mas seu rosto trazia uma grande aflição.
  Deitaram Acy no chão da oca, Upé não deixou as meninas chegarem perto, o que só fez Suia chorar e espernear como tormenta que sempre foi. Iangá tentou tranquilizar a pequena, prometendo que se ela se acalmasse levaria ela para brincar no rio novamente, o que só fez piorar a situação, Suia não queria água, queria apenas o irmão. Angá com um pouco de água tirou a pintura que cobria o corpo do seu primogênito, tirou os adereços que carregava no corpo e os guardou no canto, limpou a região do estranho ferimento no braço e chamou o curandeiro da tribo, pedia por um de seus rituais, para que Acy, seu menino, não a deixasse.
  Muito preocupado com tudo que tinha acontecido, Upé que já estava velho nessa época, resolveu convocar seus guerreiros, não gostava dessa obrigação, mas não deixaria que ninguém fizesse com sua tribo o mal que fizeram com seu filho. A tarde já estava alta quando todos apareceram no centro da aldeia para escutar o cacique. Um cheiro estranho pairava no ar, talvez fosse o cheiro do medo, tudo que é desconhecido causa muito pavor.
  - Homens estranhos invadiram nossas terras, homens maus e gananciosos. Acy estava atrás de uma caça, quando um deles, com o corpo todo coberto apareceu. Acy teve medo e se escondeu atrás de uma árvore. Ainda estava com a flecha no arco para atirar na caça quando uma grande explosão aconteceu, muita fumaça, muitos gritos, muito sangue, muita dor, um homem de pele clara atrás de outra árvore usou uma arma escura que cospe a morte no meu filho. Eles cuspiriam essa morte em todos nós se não tivéssemos acertado uma flecha neles. Só tivemos tempo de pegar Acy e nos esconder até que eles fossem embora. Voltamos por caminhos ocultos nas árvores, a terra ajudou a nos esconder. Tudo perdido, muito grito e muita dor. Temos que nos preparar para proteger nossa tribo e pra reconhecer o inimigo que nos atormenta.
  Todos ficaram preocupados, alguns nem entendiam o que o cacique queria dizer, só estando presente para entender o que seria. Homens que não eram índios e matavam índios por uma caça era algo que não acreditavam. A realidade é que não matavam por caça e sim por terra e ganancia. Coisa que eles aprenderam depois de duras experiências que viriam a seguir.

A vida continua


  O tempo passou, como tudo passa, Acy ficou bom, com uma pequena marca no braço pra lembrar que tudo aquilo passou de um pesadelo. Mas as caçadas continuaram e a vida na aldeia continuou a mesma, sem interferências de fora. Sem sinal dos inimigos de pele estranha.
  Suia já estava quase completando os oito anos nesse tempo e ainda brincava todos os dias no rio, ainda apostava corridas e sempre ganhava da irmã e ainda não prestava atenção nas histórias da mãe, a não ser que fosse o mito da criação com alguma coisa modificada, alguma coisa que fizesse ela passar horas e horas refletindo sobre. A diferença é que agora já ajudava a mãe a fazer as cerâmicas, pegou um interesse repentino pela arte e a mãe satisfeita resolveu ensina-la. Achava que já tinha passado da hora da pequena deixar seu espírito forte de lado e aprender a lidar com a argila e com as cerâmicas delicadas que toda mulher sabe fazer. Também ensinou a filha as pinturas e o significado delas e como os adornos eram peças importantes para os homens, que um grande cacique como o seu pai, deveria ter muitos adornos, para esbanjar as caças que ganhou e os intrusos que matou.
  Suia aprendeu a fazer os artesanatos e sempre ficava horas observando as anciãs trabalhando seus pratos e potes, enquanto Iangá estava com as outras meninas de sua idade ou ajudando a mãe com os deveres cotidianos. Upé se preocupava muito com sua filha mais velha, já tinha passado pelo ritual da puberdade, já sabia os segredos das mulheres a mais de um ano e ainda não encontrará um bom índio para casar. Ao contrário da sua caçula, Iangá não tinha a graça que encanta e o máximo que conseguia era comover os outros com sua presença. Mas já estava passando da hora de conversar com seus homens e descobrir com o filho de qual deles ela iria se casar, tarefa dura mas necessária. Tarefa que ficaria grato se pudesse entregar para Angá.
  O cotidiano continuava o mesmo, cultuavam a terra e o céu, faziam festas em nome de seus deuses e sorriam todas as vezes que Jacé mostrava seu adorno no pescoço em formato de sapo e garantia que tinha conseguido das mãos de sua amante Icamiaba, que sentia os poderes que aquele amuleto o dava.
  A falta de caça era outra coisa que preocupava muito Upé, alguns dias eles não conseguiam trazer nada pra casa, fracassando na obrigação de alimentar suas mulheres e crianças. Os rios tinham peixes em abundância mas as matas não ofereciam mais a carne. Faziam rituais pedindo para os deuses mais caça, mas ela não vinha como de costume. Upé não sabia mais o que fazer, não que fosse sua culpa, mas toda responsabilidade caia sobre suas costas, ele carregava o peso do mundo em ombros que já não tinham a força de anos atrás.
  Mas tudo não passava de preocupações e a pequena Suia sempre via isso como coisas de adulto, não influenciava nas suas brincadeiras e nas suas cerâmicas, como se algo algum dia pudesse interferir no mundo infantil que ela vivia, como se algo ruim pudesse acontecer, como realmente aconteceu. Decisões erradas sempre influenciam o destino de quem as toma, mas quando são tomadas por grandes pessoas, influenciam a vida de todos que estão ao redor.
  Talvez Suia confiasse na força do pai, todos veem os pais como heróis. Mas Upé tinha dúvidas e não sabia como deveria agir, Upé temia que sua tribo passasse fome, foi quando ele convocou seus guerreiros e decidiu fazer uma expedição maior, descobrir o motivo das caças terem sumido e da paz tão duradoura estar acabando cada vez mais.

Invasão


  A expedição estava pronta, Upé e mais 15 guerreiros foram atrás da caça, atrás de descobrir a fonte desse temível problema. Angá não queria que ele saísse, mas entendia que por ser mulher do cacique deveria aceitar suas obrigações, deveria apoiar suas decisões. E também sabia que a fome chegaria se não houvesse a caça, eles tinham os plantios, tinham os peixes, mas sentiam falta da caça, sentiam falta da carne.
  Upé saiu floresta a dentro e andaram, andaram, andaram por dias e noites, até que em um determinado ponto a floresta foi se acabando aos poucos, até virar uma extensa área desmatada, muito longe da tribo pra que pudessem ter contato antes. E nesse pasto descobriram bois e vacas, diversas formas de alimentos, descobriram também que ali era a tribo dos homens brancos com armas que cuspiam a morte e o antigo ressentimento da afronta que fizeram a Upé renasceu.
  Decidiram então pegar os animais deles e perceberam a necessidade que tinham de proteger a terra deles que esses homens estavam invadindo cada dia mais. O medo do desconhecido e a raiva das terras perdidas fez com que tomassem essa decisão, não feriam os homens, queriam apenas as terras de volta, suas terras, queriam a caça que eles roubavam, queriam plantar naqueles terrenos imensos que desmataram para animais que não deveriam estar ali.
  Foi assim que Upé e seus guerreiros começaram a saquear o gado e a enfrentar os fazendeiros que cada vez queriam mais e mais terras, não estavam satisfeitos nunca e sempre queriam algo a mais. Eram brigas violentas, muita morte, muita dor, muita guerra, os homens brancos não respeitavam os donos da terra e os matavam, matavam os índios com fumaça e fogo. Com fumaça e ódio. Com fumaça e gana.
  Upé tentava encobrir seus rastros, não queria que esses homens chegassem perto de sua tribo, pensava em Suia, em Angá, pensava em Ingá e Acy, pensava nas mulheres, crianças e idosos que estavam pouco atrás. Quando voltavam com a caça não contavam para as mulheres, quando os homens voltavam feridos inventavam desculpas, eles só queriam proteger seus dependentes, mas Angá via os ferimentos e sabia que eram os mesmo que Acy tinha, sabia que os inimigos eram os mesmos de meses atrás, sabia que a paz acabaria pois os homens brancos estavam vindo.
  Upé e seus homens faziam investidas, pequenas em relação aos homens que ocupavam a região, esses mesmos homens que falavam como esse cacique era cruel, que o insultavam com palavras ruins e ações piores ainda. O chamavam de bárbaro, diziam que não conhecia Deus, diziam que ele e toda a tribo eram uma ameaça, que não eram civilizados o suficiente para serem aceitos e respeitados. E a cada nova investida, a cada nova tentativa de Upé retomar a terra que era dele os brancos tinham mais raiva, os povoados sentiam mais raiva. Mas raiva do que? Se eles que tomaram a terra de Upé, se eles que mataram os índios e acabaram com suas caças, se eles que destruíam a mãe natureza, se eles que acabavam com a terra. Raiva do que? Da proteção que ele tentava fracamente dar? Ou seria apenas o conhecimento da verdade e que eles eram os últimos que poderiam mudar isso? A tribo já não era tão grande assim, índios morriam pelas armas, pelas doenças que os brancos espalhavam, pela carne que acabava. Índios morriam e brancos sorriam. Índios choravam e brancos riam. Índios choravam e brancos planejavam o seu fim.

Fogo, Sangue e Fuga


  Tudo aconteceu rápido demais, covarde demais. Os brancos planejaram, fizeram uma expedição pela mata com um guia do povoado, foram quietos, caminhavam escondidos e silenciosos. Não podiam e não queriam chamar a atenção, queriam índios surpresos e acuados. Tinham dias pra andar, queriam chegar a tardezinha, quase noite, o escuro favorece as emboscadas dos homens cruéis. Sabiam que tinham um rio pra atravessar e sabiam que demorariam por isso, que não poderiam molhar as armas nem o pavio para o fogo. Não tinham pressa, eles sabiam a solução definitiva para o problema, sabiam muito bem o que iriam fazer.
  Chegaram a tarde no rio e procuraram a travessia mais segura, mas não viram Suia escondida, não viram os olhinhos esbugalhados que encaravam aqueles monstros, não poderiam ser homens, não sentiram o medo que ela sentia, não conseguiam farejar no ar. Suia se escondeu, pediu aos deuses pra não perceberem a sua presença e os deuses foram bons com ela. Depois que o último homem passou, Suia agachada os seguiu de longe, queria correr e gritar o seu pai mas as pernas não a obedeciam, tudo estava congelado ao seu redor, foi quando ela ouviu a primeira explosão e o primeiro índio caído, seu irmão Acy estava no chão, por mais que ela chorasse nada poderia devolver ele.
  Várias explosões sucederam aquela, os homens falavam e riam mas Suia não entendia, ela não entendia o que eles queriam e o motivo de fazerem aquilo. Mais uma, mais uma, mais outra e mais outra. A terra estava manchada de sangue, o triste dia que sua mãe tanto prevenira tinha chegado, a paz tinha acabado, seu rosto cheio de lágrimas estava de encontro ao chão, terra manchada com o sangue de seus irmãos.
  A dor veio quando viu seu pai, grande cacique com suas pinturas e seus adornos sendo chutado e empurrado para o meio da aldeia, humilhado perante o restante da tribo, seu coração não aguentava mais aquilo, seus olhos se cruzaram e ela sabia que ali era o fim, tudo tinha acabado. Os homens o fizeram se ajoelhar e mais uma explosão, foi a última que Suia conseguiu ver, a última que ela conseguiu sentir, ela só sentia a terra molhada abaixo, molhada com sangue e lágrimas.
  Todas as mulheres sofreram, seus protetores estavam todos mortos, estavam jogadas as mãos de homens sem coração, mais dor e sangue para a terra caída. Mais morte. Mais horror. Corpos jogados pelo chão. Mas a crueldade maior ainda estava por vim, para finalizar o serviço e mostrar que ninguém poderia ajudar, os homens brancos pegaram os corpos dos índios, vivos, mortos ou machucados e jogaram dentro da oca do grande cacique, pegaram todo material combustível e colocaram fogo. Fizeram uma grande fogueira com as almas dos índios, a terra foi queimada, os índios foram queimados, nada poderia ser feito para mudar aquilo.
  Suia chorava, se via perdida e sozinha, até que alguém a agarrou, aquele era seu fim, mais um corpo para a grande pira funerária. Mais uma alma que iria vagar pelo mundo. Mas os deuses atenderam as preces de Suia, quem a segurou foi Angá, carregando ela pra bem longe de toda a fumaça e se escondendo na selva, se escondendo na primeira caverna que encontraram, se escondendo para viver.
  Para a grande surpresa da pequena, nessa caverna estavam Piraã e Iangá, somando ao todo quatro sobreviventes daquele imenso massacre, uma mulher com três crianças, sem rumo, sem destino, sem perspectiva de um dia melhor.

 

Sobrevivência


  A caverna úmida virou o lar, não faziam fogo com medo do branco os encontrarem, sentiam medo, frio e fome, sentiam que a morte pairava ao lado de fora e que nada poderiam fazer. Sem homens para ajudar, Angá teve que pegar todas as obrigações de um guerreiro, tinha que proteger suas crianças, alimentar e cuidar, pois ali estava o futuro de sua linhagem, de sua tribo, aqueles três deveriam dar continuidade a tudo.
  Ela caçava, pescava e ensinava as meninas a cultura de seu povo. Ensinava a fazerem pequenas roças escondidas para uma alimentação mais completa, ensinava Piraã de sua obrigação como único homem restante da tribo. Ensinava e ensinava, seu dom se resumia a proteger e ensinar.
  Tornaram-se nômades, não ficavam mais de uma quinzena no mesmo lugar, o medo os impulsionava para novas cavernas, para novas descobertas, para novos lugares com segurança em potencial. Se sentiam medo iam para os topos de árvores e ali permaneciam por dias e dias sem fim. Não viviam, apenas arrastavam a sobrevivência a um nível altíssimo. Eram guerreiros, isso não poderia ser negado. Mas eram guerreiros acuados e com medo. Com medo do que poderia acontecer.
  Suia agora tinha nove anos e continuava uma garota esperta e agitada, mas o trauma nunca saiu de si. Por noites e noites não conseguia dormir e ficava olhando a floresta, com medo do perigo aparecer no escuro encoberto das árvores. Suia não sorria mais, não tinha mais coragem nem espontaneidade para isso. Sentia falta do seu rio, das suas brincadeiras, da lama grudada no cabelo, de correr pelas árvores. Sentia falta de tudo.
  Aprendeu a ser mulher cedo demais, nunca teve direito ao seu ritual de puberdade, nunca teve danças ou músicas, nunca teve sua cerimônia de casamento, nunca soube nem o que a próxima caverna poderia reservar e isso a assustava imensamente.
  Alguns dias passavam fome em outros tinham fartura, algumas vezes conseguiam algum peixe, quando a ousadia de chegar próximo de um rio deixava. Sentiam a presença do homem branco a cada passo que davam, talvez eles estivessem perto ou talvez não se importassem com um grupo tão pequeno, ainda havia a possibilidade de nem notarem a presença ou existência deles.
  As noites eram bonitas dos topos das árvores, faziam esquecer momentaneamente o motivo de estarem ali, tinham estrelas, muitas estrelas, Angá contava suas histórias e Iangá dormia ao lado da pequena irmã, que não era mais tão pequena. Piraã sempre fingia montar guarda mas todos sabiam que assim que o sono chegava ele dormia como se não tivesse responsabilidade alguma, mas um rapaz de doze anos já deveria saber o que era certo ou errado.
  Angá planejava casar sua Iangá com ele, mas um acidente triste impediu que isso acontecesse. No meio de uma caçada uma onça conseguiu morder Iangá que mesmo com todos os conhecimentos da mãe não conseguiu sobreviver e o que já era pequeno ficou cada vez menor. Angá em desespero não sabia o que fazer, não conseguiria gerar filhos pois estava velha demais e sua pequena Suia não tinha entrado na puberdade ainda. Não podia gerar filhos antes disso, resolveu esperar e ver o que aconteceria com sua vida e se conseguiria dar algum significado para a sua existência.

Suia


  Correndo, tentando se esconder na floresta, sangue e dor no ventre, era algum castigo por algo que ela não fez, era nova e não entendia, não sabia o que estava acontecendo, alguém corria atrás dela, se escondia mas não achava saída, seu fim, queria gritar mas tinha medo do seu perseguidor atraído pelo barulho descobrir sua posição. Dor na cabeça, tudo escuro, o mundo apagou.
  Suia acordou no topo da árvore com sua mãe explicando o que estava acontecendo, ela era oficialmente uma mulher, teve sua puberdade e seu quase ritual, aprendeu sobre os segredos das mulheres e sobre os homens, aprendeu como gerar filhos e aprendeu que essa era a obrigação dela, que precisavam de bebes para dar continuidade a tribo.
  Aprendeu como os bebes são feitos e que Piraã seria pai de seus filhos, desde muito nova aprendeu que não tinha escolha e sim obrigações, aceitou que era isso que deveria fazer e quando encontrassem um lugar seguro dariam continuidade a linhagem.
  Angá já estava muito velha, não conseguia viajar por distâncias muito longas e quem caçava já era Piraã, que mesmo sem costume não deixava as duas passarem fome. Viajavam por dias sem fins, por noites dormiam em cavernas e buracos na terra, até que encontraram um lugar que parecia ter paz, um lugar que aos olhos deles estava intocado pelos brancos, estava livre da praga e da morte.
  Suia teve quatro filhos, meus três irmãos hoje não estão por perto, nos abandonavam com frequência por uma vida mais fácil em qualquer outro lugar, eu continuei ao lado de minha mãe, continuei com Suia até o dia de sua morte, que foi tranquila e junto de Piraã que se mostrou um guerreiro maior e melhor do que imaginavam, que nos protegeu e nos guiou, que foi um bom pai para seus quatro filhos e que acompanhou sua Suia pouco tempo depois da morte dela.
  Foi numa tarde tranquila, Suia já tinha criado sua quarta filha e estava cansada, dizia que queria descobrir pra onde Angá foi e sentia falta de Upé e de toda sua tribo, queria os tempos bons de volta. Dizia que nunca poderia nos ensinar tão bem quando Angá o que era uma tribo e seu significado, que toda sua vida foi rondada pelo medo do homem branco e que aquele pequeno pedaço de terra esquecido seria seu fim, seria um bom lugar para descansar. Faleceu deitada, tranquila, depois de um dia de trabalho na roça esperando por Piraã.
  Com meu pai não foi diferente, não teve medo nem dor, era o descanso merecido depois de tantas lutas e dores, de tantos momentos de insegurança e medo na natureza.

 

Depois que Suia se foi


  Tive quatro irmãos, três deles sumiam e voltavam na mata, procuravam por coisas melhores que uma pequena habitação fira e úmida. Nunca ficavam longe e assim como eu também só sabiam se comunicar com nosso pequeno dialeto. Entre idas e vindas traziam alguma carne proveniente da caça, alguma peça encontrada na mata ou qualquer coisa que chamasse a atenção deles.
  Meu irmão mais velho cuidava da gente depois que minha mãe se foi, mas ele continuava ausente com meus irmãos e tive que aprender os segredos da natureza e tudo que ela tinha pra me dizer. Aprendi a caçar, aprendei a plantar e colher, aprendi os ciclos e aprendi que a vida é uma continuidade imensa desses ciclos e marés.
  Não tínhamos o mesmo medo do homem branco que nossos pais, pra nós eles não passavam de lenda e aquelas histórias eram apenas pros meninos não irem longe demais, éramos descuidados, não cobríamos nossos rastros e nem tentávamos esconder a nossa existência. Acreditávamos que éramos os únicos sobreviventes daquelas terras, mas não sabíamos que estávamos chamando atenção, que em pouco tempo seriamos observados assim como os pais de nossos pais foram.
  Não demorou muito para os primeiros contatos, mas não entendíamos o que eles queriam dizer. Hoje eu tenho medo, meus irmãos sumiram e me sento sozinha na floresta esperando eles chegarem. Ainda lembro de algumas cavernas frias que minha mãe me mostrou, lembro que aquilo parecia estranho, mas não sou mais tão nova como no começo desse relato e hoje as noites frias e úmidas das cavernas me parecem mais acolhedoras que as tristes noites que tenho depois que conheci os homens brancos.

3 comentários:

  1. Jakline. Parabéns pelo blog. Está bonito e rico. Gostei muito e vou seguí-lo sempre. Só conseguiremos salvar nossos povos, se abrirmos os olhos da maioria dos brancos e negros da verdadeira sabedoria, capaz de salvar a vida do homem por aqui. A sabedoria dos nossos ancestrais, seu modo e filosofia de vida. Grande abraço.

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    1. Fico extremamente grata e feliz com o seu comentário, como apreciadora e estudante da cultura indígena me é muito reconfortante conhecer mais pessoas com os mesmos interesses e pensamentos ♥

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