Suia
“Minha casa era aqui,
grande.
Moravam muitas
pessoas,
Uma família grande.
Aqui as
redes...muitas.
Os índios tocaram
muito maracá de noite.
Plantaram mandioca.
Precisa tocar pra
nascer planta nova.
Depois que parou a
música dos maracás...
Já era quase de
manhã.
Então chegaram muitos
homens
Atiraram muito
Muito chumbo no meu
povo
Acertava na cabeça e
o coração parava
E índio caia.
Eu chorei muito
Índio homem, mulher,
menino bonito, morreu tudo
Acabou.”
Relato de uma das
sobreviventes do massacre contra
Os Avá-Canoeiro feito
em 1970 por fazendeiros e
Moradores dos povoados
ao redor da tribo.
Prólogo
Vazio. A floresta
está toda vazia. Vejo mato, terra, céu, ainda teimo olhar pro chão, ainda teimo
olhar pro topo das árvores. Estamos sozinhos. Perdidos na natureza. Essa terra
foi nossa, muito tempo atrás, antes de mim, antes da minha mãe, antes de tudo.
Antes dos brancos, antes das armas, antes do fogo. Antes de todas as mortes.
Mas não quero falar antes o que só posso explicar depois. A vida é assim, o
rumo das palavras não é como o destino, inexorável. Preciso de um rumo, de um
porto seguro, preciso contar a minha história, que não é só minha, é de todos
nós. Essa história começou séculos atrás. Passado de mãe pra filha, de geração
em geração. Comigo não seria diferente, minha mãe me contou. Mas sinto
necessidade de escrever, nosso destino está se apagando e quando o último da
minha tribo morrer, ninguém vai saber o que aconteceu. Não vai ter mãe para
filha, nem filha para mãe. No final o que resta é o vazio. Esse mesmo vazio de
uma noite escura na floresta. Tenho medo que eles me encontrem. Medo de não
conseguir terminar o meu relato, mas se esse for o meu destino, aceito e
sorrio. A vida é igual ao nosso destino, ela sim é inexorável.
Não tenho filha pra
seguir nossa tradição, somos tão poucos, aqui não passamos de cinco, mas minha
mãe diz que já fomos muitos, milhares! E essa terra era toda povoada, tinham
crianças correndo, todos tínhamos pais e mães. O homem branco estava longe, não
tinha chegado até nós. Isso foi a muitas e muitas gerações atrás, eu era uma
semente no meio da semente de outra semente, meu povo era feliz e sorria, hoje
chora, ou não chora mais, não temos tempo nem segurança suficiente para chorar.
Mas não quero me perder nas palavras, as vezes passado e presente se misturam,
mas nunca o futuro, esse é certo e triste demais pra ser declarado.
Vivíamos nessa
terra, hoje conhecida como Goiás e alguns dos nossos viviam em Tocantins, mas
não a chamávamos assim, tínhamos um nome diferente e antigo, não que isso faça
diferença, o importante é o lugar em si. Nossas histórias dizem que era um
lugar tranquilo, tínhamos que nos preocupar apenas com a caça, os homens
cuidavam disso, cuidavam de nos alimentar. Eles também eram responsáveis por
nossa segurança, não que precisássemos. A floresta era a nossa mãe e nos
acolhia, nas noites de chuva as árvores nos protegiam, nos dias de calor a
brisa nos refrescava e quando estava muito frio tínhamos uns aos outros para
aquecer. Não faltava comida, muito menos a tranquilidade para caçar. Usávamos
nossa língua e não tínhamos com o que nos envergonhar, erámos muitos, cada
tribo com o seu dialeto, mas nos entendíamos. Todos nós nos entendíamos.
Sou muito nova para
me lembrar de algo, não lembro das fugas, nem das cavernas frias e escuras que
nos acolhiam, elas nos protegiam dos homens estranhos, com armas vindas de
longe para nos matar. Nessas ocasiões minha mãe me contava suas histórias, com
muito pesar. Fechava os olhos e encostava na pedra, sentia sua dor. A dor de
quem perdeu seu maior bem para o homem branco. A dor de quem foge na sua
própria casa, foge pela vida, pela chance de poder passar adiante a história e
é assim que começo essa narrativa, juntando os cacos do passado com o presente
e tentando, quem sabe conseguindo, passar o real significado das minhas
palavras, das palavras do meu povo.
Tudo dói, a noite
avança e com esse cenário tudo tem seu início...
Tudo tem seu início
- Corre Suia, corre! Vem logo! Atravessa o rio!
Iangá já estava
impaciente, não aguentava mais esperar pela irmã à beira do rio. A outra garota
corria e pulava na água, molhando todos que estavam ao redor. Suia sempre teve
esse espírito brincalhão e revolto, como os mares em dias de fúria. A garotinha
mais bonita da tribo, filha do Cacique e de uma boa índia guerreira, não igual
as Icamiabas, mas sim como uma boa mãe que cumpria suas obrigações e acima de
tudo as fazia com amor e dedicação.
- Suia! Não vou te
esperar mais. Nosso pai não gosta de atrasos e você sabe disso.
Então Suia já toda
suja do barro nas margens do rio e mais molhada que em dia de chuva resolve que
está na hora de ir embora com sua irmã mais velha, nada até a outra margem do
rio e joga água na cara da irmã num tom jocoso e irresponsável que só uma
garotinha com seus sete anos pode ter.
- Eu te pego Suia,
você me molhou inteira! – grita Iangá enquanto tenta limpar seu rosto
- Só se você
conseguir me pegar
Dizendo isso sai
correndo na frente da irmã, seus cabelos grudados nas costas com alguns fios
revoltos voando ao redor. Iangá sem querer ser deixada para trás sai correndo
atrás de sua irmã mais nova, rindo e ameaçando a pequena criatura esguia que
estava na sua frente. Corriam e sorriam como se o mundo não tivesse fim e
aquele fosse o melhor dia de suas vidas. Talvez o sol brilhando ao redor desse
essa leve impressão de irresponsabilidade no ar. E as duas correram como se não
tivessem nada mais para fazer, sentindo o prazer da terra nos pés descalços e
da brisa suave que envolvia o corpo a cada passo.
- Sabia que você não
conseguiria me pegar Iangá, você nunca consegue, é velha demais para isso!
- Pois se prepare,
no dia que eu consegui te encho de cascudos criança
- Não sou criança,
tenho poucos anos a menos que você – Suia sempre ficava irritada com essas
provocações que sua irmã mais velha fazia, não se achava criança em seus plenos
sete anos, nunca se achou criança para dizer a verdade, sentia grande
responsabilidade por ser filha de Upé, o Cacique mais temido de toda região.
- Quando você tiver
mais que dez anos paro de te chamar de criança, antes disso aceite sua condição
– Dizia Iangá sorrindo para a irmã, pois sabia que isso seria o fim do mundo
para a pequena impaciente, se 3 dias eram o infinito, 3 anos eram o equivalente
a viver, morrer e nascer novamente.
- As duas vão ficar
ai discutindo quem é mais criança ou vão entrar e ajudar a mãe?
As duas garotas
correram para dentro da oca de encontro a mãe, a habilidosa Angá, com suas
cerâmicas que luziam a luz do sol e davam um brilho bonito para a habitação.
Sabiam que a mãe não queria a ajuda delas, só gostava de ter alguém pra contar
suas histórias, que de uns tempos pra cá foram obrigadas a ouvir com mais
concentração e repetir algumas vezes, a mãe andava preocupada, Acy e Upé saiam
da tribo com uma frequência maior nesses dias, levavam alguns dos homens
também. Seu marido de tantas datas pedia para não se preocupar, estavam apenas
caçando, mas a caça as vezes não vinha.
- Vocês duas sabem
como é importante a história do nosso povo, uma história que não é só minha ou
só sua, uma história que é toda nossa e que devemos preservar. Hoje somos
muitos mas quando formos poucos deveremos saber o que nos aconteceu.
As garotas sentavam
na frente de mãe e a viam trabalhando a argila naquelas pequenas mãos, que nem
por isso eram frágeis, viam a argila ser moldada enquanto ouviam as histórias e
cânticos de seu povo. Achavam engraçada a preocupação repentina da mãe com os
homens, não entendiam o significado de perigo, nunca passaram por algo que as
pudesse machucar.
- Mãe, conta de novo
a história da nossa criação? – Suia tinha adoração por essa história e quase
todos os dias pedia para a mãe contar novamente.
- Muitos e muitos e
muitos e muitos séculos atrás – Começou Angá – O sol, grande coração do nosso
criador sofria enclausurado na sua prisão, até que um de seus antepassados lhe
soprou uma fumaça, vinda de seu cachimbo mágico, herança também de um
antepassado, assim nasceu nossa grande mãe, a nossa terra, e foi a partir dela
que o primeiro índio nasceu e foi a partir desse índio que toda a terra foi
povoada, todos os índios vem do nosso grande antepassado, todos nós somos
filhos do mesmo pai.
Angá continuou
contando sua história, Suia se deliciava a cada novo detalhe que a mãe falava
na hora, mas Iangá não prestava mais atenção, seu pai tinha chegado da caçada,
todos traziam flores para as mulheres, mas o que chamou atenção de Iangá foi
seu irmão. Acy estava machucado, parecia muito abatido, como se um grande pesar
passasse por sua cabeça. Upé não estava diferente, seu corpo estava intacto mas
seu rosto trazia uma grande aflição.
Deitaram Acy no chão
da oca, Upé não deixou as meninas chegarem perto, o que só fez Suia chorar e
espernear como tormenta que sempre foi. Iangá tentou tranquilizar a pequena,
prometendo que se ela se acalmasse levaria ela para brincar no rio novamente, o
que só fez piorar a situação, Suia não queria água, queria apenas o irmão. Angá
com um pouco de água tirou a pintura que cobria o corpo do seu primogênito,
tirou os adereços que carregava no corpo e os guardou no canto, limpou a região
do estranho ferimento no braço e chamou o curandeiro da tribo, pedia por um de
seus rituais, para que Acy, seu menino, não a deixasse.
Muito preocupado com
tudo que tinha acontecido, Upé que já estava velho nessa época, resolveu
convocar seus guerreiros, não gostava dessa obrigação, mas não deixaria que
ninguém fizesse com sua tribo o mal que fizeram com seu filho. A tarde já
estava alta quando todos apareceram no centro da aldeia para escutar o cacique.
Um cheiro estranho pairava no ar, talvez fosse o cheiro do medo, tudo que é
desconhecido causa muito pavor.
- Homens estranhos
invadiram nossas terras, homens maus e gananciosos. Acy estava atrás de uma
caça, quando um deles, com o corpo todo coberto apareceu. Acy teve medo e se
escondeu atrás de uma árvore. Ainda estava com a flecha no arco para atirar na
caça quando uma grande explosão aconteceu, muita fumaça, muitos gritos, muito
sangue, muita dor, um homem de pele clara atrás de outra árvore usou uma arma
escura que cospe a morte no meu filho. Eles cuspiriam essa morte em todos nós
se não tivéssemos acertado uma flecha neles. Só tivemos tempo de pegar Acy e
nos esconder até que eles fossem embora. Voltamos por caminhos ocultos nas
árvores, a terra ajudou a nos esconder. Tudo perdido, muito grito e muita dor.
Temos que nos preparar para proteger nossa tribo e pra reconhecer o inimigo que
nos atormenta.
Todos ficaram
preocupados, alguns nem entendiam o que o cacique queria dizer, só estando
presente para entender o que seria. Homens que não eram índios e matavam índios
por uma caça era algo que não acreditavam. A realidade é que não matavam por
caça e sim por terra e ganancia. Coisa que eles aprenderam depois de duras
experiências que viriam a seguir.
A vida continua
O tempo passou, como
tudo passa, Acy ficou bom, com uma pequena marca no braço pra lembrar que tudo
aquilo passou de um pesadelo. Mas as caçadas continuaram e a vida na aldeia
continuou a mesma, sem interferências de fora. Sem sinal dos inimigos de pele
estranha.
Suia já estava quase
completando os oito anos nesse tempo e ainda brincava todos os dias no rio,
ainda apostava corridas e sempre ganhava da irmã e ainda não prestava atenção
nas histórias da mãe, a não ser que fosse o mito da criação com alguma coisa
modificada, alguma coisa que fizesse ela passar horas e horas refletindo sobre.
A diferença é que agora já ajudava a mãe a fazer as cerâmicas, pegou um
interesse repentino pela arte e a mãe satisfeita resolveu ensina-la. Achava que
já tinha passado da hora da pequena deixar seu espírito forte de lado e
aprender a lidar com a argila e com as cerâmicas delicadas que toda mulher sabe
fazer. Também ensinou a filha as pinturas e o significado delas e como os
adornos eram peças importantes para os homens, que um grande cacique como o seu
pai, deveria ter muitos adornos, para esbanjar as caças que ganhou e os
intrusos que matou.
Suia aprendeu a
fazer os artesanatos e sempre ficava horas observando as anciãs trabalhando
seus pratos e potes, enquanto Iangá estava com as outras meninas de sua idade
ou ajudando a mãe com os deveres cotidianos. Upé se preocupava muito com sua
filha mais velha, já tinha passado pelo ritual da puberdade, já sabia os
segredos das mulheres a mais de um ano e ainda não encontrará um bom índio para
casar. Ao contrário da sua caçula, Iangá não tinha a graça que encanta e o
máximo que conseguia era comover os outros com sua presença. Mas já estava
passando da hora de conversar com seus homens e descobrir com o filho de qual
deles ela iria se casar, tarefa dura mas necessária. Tarefa que ficaria grato
se pudesse entregar para Angá.
O cotidiano continuava
o mesmo, cultuavam a terra e o céu, faziam festas em nome de seus deuses e
sorriam todas as vezes que Jacé mostrava seu adorno no pescoço em formato de
sapo e garantia que tinha conseguido das mãos de sua amante Icamiaba, que
sentia os poderes que aquele amuleto o dava.
A falta de caça era
outra coisa que preocupava muito Upé, alguns dias eles não conseguiam trazer
nada pra casa, fracassando na obrigação de alimentar suas mulheres e crianças.
Os rios tinham peixes em abundância mas as matas não ofereciam mais a carne.
Faziam rituais pedindo para os deuses mais caça, mas ela não vinha como de
costume. Upé não sabia mais o que fazer, não que fosse sua culpa, mas toda
responsabilidade caia sobre suas costas, ele carregava o peso do mundo em
ombros que já não tinham a força de anos atrás.
Mas tudo não passava
de preocupações e a pequena Suia sempre via isso como coisas de adulto, não
influenciava nas suas brincadeiras e nas suas cerâmicas, como se algo algum dia
pudesse interferir no mundo infantil que ela vivia, como se algo ruim pudesse
acontecer, como realmente aconteceu. Decisões erradas sempre influenciam o
destino de quem as toma, mas quando são tomadas por grandes pessoas,
influenciam a vida de todos que estão ao redor.
Talvez Suia
confiasse na força do pai, todos veem os pais como heróis. Mas Upé tinha
dúvidas e não sabia como deveria agir, Upé temia que sua tribo passasse fome,
foi quando ele convocou seus guerreiros e decidiu fazer uma expedição maior,
descobrir o motivo das caças terem sumido e da paz tão duradoura estar acabando
cada vez mais.
Invasão
A expedição estava
pronta, Upé e mais 15 guerreiros foram atrás da caça, atrás de descobrir a
fonte desse temível problema. Angá não queria que ele saísse, mas entendia que
por ser mulher do cacique deveria aceitar suas obrigações, deveria apoiar suas
decisões. E também sabia que a fome chegaria se não houvesse a caça, eles
tinham os plantios, tinham os peixes, mas sentiam falta da caça, sentiam falta
da carne.
Upé saiu floresta a
dentro e andaram, andaram, andaram por dias e noites, até que em um determinado
ponto a floresta foi se acabando aos poucos, até virar uma extensa área
desmatada, muito longe da tribo pra que pudessem ter contato antes. E nesse
pasto descobriram bois e vacas, diversas formas de alimentos, descobriram
também que ali era a tribo dos homens brancos com armas que cuspiam a morte e o
antigo ressentimento da afronta que fizeram a Upé renasceu.
Decidiram então
pegar os animais deles e perceberam a necessidade que tinham de proteger a
terra deles que esses homens estavam invadindo cada dia mais. O medo do
desconhecido e a raiva das terras perdidas fez com que tomassem essa decisão,
não feriam os homens, queriam apenas as terras de volta, suas terras, queriam a
caça que eles roubavam, queriam plantar naqueles terrenos imensos que
desmataram para animais que não deveriam estar ali.
Foi assim que Upé e
seus guerreiros começaram a saquear o gado e a enfrentar os fazendeiros que
cada vez queriam mais e mais terras, não estavam satisfeitos nunca e sempre
queriam algo a mais. Eram brigas violentas, muita morte, muita dor, muita
guerra, os homens brancos não respeitavam os donos da terra e os matavam,
matavam os índios com fumaça e fogo. Com fumaça e ódio. Com fumaça e gana.
Upé tentava encobrir
seus rastros, não queria que esses homens chegassem perto de sua tribo, pensava
em Suia, em Angá, pensava em Ingá e Acy, pensava nas mulheres, crianças e
idosos que estavam pouco atrás. Quando voltavam com a caça não contavam para as
mulheres, quando os homens voltavam feridos inventavam desculpas, eles só
queriam proteger seus dependentes, mas Angá via os ferimentos e sabia que eram
os mesmo que Acy tinha, sabia que os inimigos eram os mesmos de meses atrás,
sabia que a paz acabaria pois os homens brancos estavam vindo.
Upé e seus homens
faziam investidas, pequenas em relação aos homens que ocupavam a região, esses
mesmos homens que falavam como esse cacique era cruel, que o insultavam com
palavras ruins e ações piores ainda. O chamavam de bárbaro, diziam que não
conhecia Deus, diziam que ele e toda a tribo eram uma ameaça, que não eram
civilizados o suficiente para serem aceitos e respeitados. E a cada nova
investida, a cada nova tentativa de Upé retomar a terra que era dele os brancos
tinham mais raiva, os povoados sentiam mais raiva. Mas raiva do que? Se eles
que tomaram a terra de Upé, se eles que mataram os índios e acabaram com suas
caças, se eles que destruíam a mãe natureza, se eles que acabavam com a terra.
Raiva do que? Da proteção que ele tentava fracamente dar? Ou seria apenas o
conhecimento da verdade e que eles eram os últimos que poderiam mudar isso? A
tribo já não era tão grande assim, índios morriam pelas armas, pelas doenças
que os brancos espalhavam, pela carne que acabava. Índios morriam e brancos
sorriam. Índios choravam e brancos riam. Índios choravam e brancos planejavam o
seu fim.
Fogo, Sangue e Fuga
Tudo aconteceu
rápido demais, covarde demais. Os brancos planejaram, fizeram uma expedição
pela mata com um guia do povoado, foram quietos, caminhavam escondidos e
silenciosos. Não podiam e não queriam chamar a atenção, queriam índios
surpresos e acuados. Tinham dias pra andar, queriam chegar a tardezinha, quase
noite, o escuro favorece as emboscadas dos homens cruéis. Sabiam que tinham um
rio pra atravessar e sabiam que demorariam por isso, que não poderiam molhar as
armas nem o pavio para o fogo. Não tinham pressa, eles sabiam a solução
definitiva para o problema, sabiam muito bem o que iriam fazer.
Chegaram a tarde no
rio e procuraram a travessia mais segura, mas não viram Suia escondida, não
viram os olhinhos esbugalhados que encaravam aqueles monstros, não poderiam ser
homens, não sentiram o medo que ela sentia, não conseguiam farejar no ar. Suia
se escondeu, pediu aos deuses pra não perceberem a sua presença e os deuses
foram bons com ela. Depois que o último homem passou, Suia agachada os seguiu
de longe, queria correr e gritar o seu pai mas as pernas não a obedeciam, tudo
estava congelado ao seu redor, foi quando ela ouviu a primeira explosão e o
primeiro índio caído, seu irmão Acy estava no chão, por mais que ela chorasse
nada poderia devolver ele.
Várias explosões
sucederam aquela, os homens falavam e riam mas Suia não entendia, ela não
entendia o que eles queriam e o motivo de fazerem aquilo. Mais uma, mais uma,
mais outra e mais outra. A terra estava manchada de sangue, o triste dia que
sua mãe tanto prevenira tinha chegado, a paz tinha acabado, seu rosto cheio de
lágrimas estava de encontro ao chão, terra manchada com o sangue de seus
irmãos.
A dor veio quando
viu seu pai, grande cacique com suas pinturas e seus adornos sendo chutado e
empurrado para o meio da aldeia, humilhado perante o restante da tribo, seu
coração não aguentava mais aquilo, seus olhos se cruzaram e ela sabia que ali
era o fim, tudo tinha acabado. Os homens o fizeram se ajoelhar e mais uma
explosão, foi a última que Suia conseguiu ver, a última que ela conseguiu
sentir, ela só sentia a terra molhada abaixo, molhada com sangue e lágrimas.
Todas as mulheres
sofreram, seus protetores estavam todos mortos, estavam jogadas as mãos de
homens sem coração, mais dor e sangue para a terra caída. Mais morte. Mais
horror. Corpos jogados pelo chão. Mas a crueldade maior ainda estava por vim,
para finalizar o serviço e mostrar que ninguém poderia ajudar, os homens
brancos pegaram os corpos dos índios, vivos, mortos ou machucados e jogaram
dentro da oca do grande cacique, pegaram todo material combustível e colocaram
fogo. Fizeram uma grande fogueira com as almas dos índios, a terra foi
queimada, os índios foram queimados, nada poderia ser feito para mudar aquilo.
Suia chorava, se via
perdida e sozinha, até que alguém a agarrou, aquele era seu fim, mais um corpo
para a grande pira funerária. Mais uma alma que iria vagar pelo mundo. Mas os
deuses atenderam as preces de Suia, quem a segurou foi Angá, carregando ela pra
bem longe de toda a fumaça e se escondendo na selva, se escondendo na primeira
caverna que encontraram, se escondendo para viver.
Para a grande
surpresa da pequena, nessa caverna estavam Piraã e Iangá, somando ao todo
quatro sobreviventes daquele imenso massacre, uma mulher com três crianças, sem
rumo, sem destino, sem perspectiva de um dia melhor.
Sobrevivência
A caverna úmida
virou o lar, não faziam fogo com medo do branco os encontrarem, sentiam medo,
frio e fome, sentiam que a morte pairava ao lado de fora e que nada poderiam
fazer. Sem homens para ajudar, Angá teve que pegar todas as obrigações de um
guerreiro, tinha que proteger suas crianças, alimentar e cuidar, pois ali
estava o futuro de sua linhagem, de sua tribo, aqueles três deveriam dar
continuidade a tudo.
Ela caçava, pescava
e ensinava as meninas a cultura de seu povo. Ensinava a fazerem pequenas roças
escondidas para uma alimentação mais completa, ensinava Piraã de sua obrigação
como único homem restante da tribo. Ensinava e ensinava, seu dom se resumia a proteger
e ensinar.
Tornaram-se nômades,
não ficavam mais de uma quinzena no mesmo lugar, o medo os impulsionava para
novas cavernas, para novas descobertas, para novos lugares com segurança em
potencial. Se sentiam medo iam para os topos de árvores e ali permaneciam por
dias e dias sem fim. Não viviam, apenas arrastavam a sobrevivência a um nível
altíssimo. Eram guerreiros, isso não poderia ser negado. Mas eram guerreiros
acuados e com medo. Com medo do que poderia acontecer.
Suia agora tinha nove
anos e continuava uma garota esperta e agitada, mas o trauma nunca saiu de si.
Por noites e noites não conseguia dormir e ficava olhando a floresta, com medo
do perigo aparecer no escuro encoberto das árvores. Suia não sorria mais, não
tinha mais coragem nem espontaneidade para isso. Sentia falta do seu rio, das
suas brincadeiras, da lama grudada no cabelo, de correr pelas árvores. Sentia
falta de tudo.
Aprendeu a ser
mulher cedo demais, nunca teve direito ao seu ritual de puberdade, nunca teve
danças ou músicas, nunca teve sua cerimônia de casamento, nunca soube nem o que
a próxima caverna poderia reservar e isso a assustava imensamente.
Alguns dias passavam
fome em outros tinham fartura, algumas vezes conseguiam algum peixe, quando a
ousadia de chegar próximo de um rio deixava. Sentiam a presença do homem branco
a cada passo que davam, talvez eles estivessem perto ou talvez não se
importassem com um grupo tão pequeno, ainda havia a possibilidade de nem
notarem a presença ou existência deles.
As noites eram
bonitas dos topos das árvores, faziam esquecer momentaneamente o motivo de
estarem ali, tinham estrelas, muitas estrelas, Angá contava suas histórias e
Iangá dormia ao lado da pequena irmã, que não era mais tão pequena. Piraã
sempre fingia montar guarda mas todos sabiam que assim que o sono chegava ele
dormia como se não tivesse responsabilidade alguma, mas um rapaz de doze anos
já deveria saber o que era certo ou errado.
Angá planejava casar
sua Iangá com ele, mas um acidente triste impediu que isso acontecesse. No meio
de uma caçada uma onça conseguiu morder Iangá que mesmo com todos os
conhecimentos da mãe não conseguiu sobreviver e o que já era pequeno ficou cada
vez menor. Angá em desespero não sabia o que fazer, não conseguiria gerar
filhos pois estava velha demais e sua pequena Suia não tinha entrado na
puberdade ainda. Não podia gerar filhos antes disso, resolveu esperar e ver o
que aconteceria com sua vida e se conseguiria dar algum significado para a sua
existência.
Suia
Correndo, tentando
se esconder na floresta, sangue e dor no ventre, era algum castigo por algo que
ela não fez, era nova e não entendia, não sabia o que estava acontecendo,
alguém corria atrás dela, se escondia mas não achava saída, seu fim, queria
gritar mas tinha medo do seu perseguidor atraído pelo barulho descobrir sua
posição. Dor na cabeça, tudo escuro, o mundo apagou.
Suia acordou no topo
da árvore com sua mãe explicando o que estava acontecendo, ela era oficialmente
uma mulher, teve sua puberdade e seu quase ritual, aprendeu sobre os segredos
das mulheres e sobre os homens, aprendeu como gerar filhos e aprendeu que essa
era a obrigação dela, que precisavam de bebes para dar continuidade a tribo.
Aprendeu como os
bebes são feitos e que Piraã seria pai de seus filhos, desde muito nova
aprendeu que não tinha escolha e sim obrigações, aceitou que era isso que
deveria fazer e quando encontrassem um lugar seguro dariam continuidade a
linhagem.
Angá já estava muito
velha, não conseguia viajar por distâncias muito longas e quem caçava já era
Piraã, que mesmo sem costume não deixava as duas passarem fome. Viajavam por
dias sem fins, por noites dormiam em cavernas e buracos na terra, até que
encontraram um lugar que parecia ter paz, um lugar que aos olhos deles estava
intocado pelos brancos, estava livre da praga e da morte.
Suia teve quatro
filhos, meus três irmãos hoje não estão por perto, nos abandonavam com
frequência por uma vida mais fácil em qualquer outro lugar, eu continuei ao
lado de minha mãe, continuei com Suia até o dia de sua morte, que foi tranquila
e junto de Piraã que se mostrou um guerreiro maior e melhor do que imaginavam,
que nos protegeu e nos guiou, que foi um bom pai para seus quatro filhos e que
acompanhou sua Suia pouco tempo depois da morte dela.
Foi numa tarde
tranquila, Suia já tinha criado sua quarta filha e estava cansada, dizia que
queria descobrir pra onde Angá foi e sentia falta de Upé e de toda sua tribo,
queria os tempos bons de volta. Dizia que nunca poderia nos ensinar tão bem
quando Angá o que era uma tribo e seu significado, que toda sua vida foi
rondada pelo medo do homem branco e que aquele pequeno pedaço de terra
esquecido seria seu fim, seria um bom lugar para descansar. Faleceu deitada,
tranquila, depois de um dia de trabalho na roça esperando por Piraã.
Com meu pai não foi
diferente, não teve medo nem dor, era o descanso merecido depois de tantas
lutas e dores, de tantos momentos de insegurança e medo na natureza.
Depois que Suia se foi
Tive quatro irmãos,
três deles sumiam e voltavam na mata, procuravam por coisas melhores que uma
pequena habitação fira e úmida. Nunca ficavam longe e assim como eu também só
sabiam se comunicar com nosso pequeno dialeto. Entre idas e vindas traziam
alguma carne proveniente da caça, alguma peça encontrada na mata ou qualquer
coisa que chamasse a atenção deles.
Meu irmão mais velho
cuidava da gente depois que minha mãe se foi, mas ele continuava ausente com
meus irmãos e tive que aprender os segredos da natureza e tudo que ela tinha
pra me dizer. Aprendi a caçar, aprendei a plantar e colher, aprendi os ciclos e
aprendi que a vida é uma continuidade imensa desses ciclos e marés.
Não tínhamos o mesmo
medo do homem branco que nossos pais, pra nós eles não passavam de lenda e
aquelas histórias eram apenas pros meninos não irem longe demais, éramos
descuidados, não cobríamos nossos rastros e nem tentávamos esconder a nossa
existência. Acreditávamos que éramos os únicos sobreviventes daquelas terras,
mas não sabíamos que estávamos chamando atenção, que em pouco tempo seriamos
observados assim como os pais de nossos pais foram.
Não demorou muito
para os primeiros contatos, mas não entendíamos o que eles queriam dizer. Hoje
eu tenho medo, meus irmãos sumiram e me sento sozinha na floresta esperando
eles chegarem. Ainda lembro de algumas cavernas frias que minha mãe me mostrou,
lembro que aquilo parecia estranho, mas não sou mais tão nova como no começo
desse relato e hoje as noites frias e úmidas das cavernas me parecem mais
acolhedoras que as tristes noites que tenho depois que conheci os homens
brancos.
Jakline. Parabéns pelo blog. Está bonito e rico. Gostei muito e vou seguí-lo sempre. Só conseguiremos salvar nossos povos, se abrirmos os olhos da maioria dos brancos e negros da verdadeira sabedoria, capaz de salvar a vida do homem por aqui. A sabedoria dos nossos ancestrais, seu modo e filosofia de vida. Grande abraço.
ResponderExcluirFico extremamente grata e feliz com o seu comentário, como apreciadora e estudante da cultura indígena me é muito reconfortante conhecer mais pessoas com os mesmos interesses e pensamentos ♥
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